Acórdão: Apelação Cível n. 2002.001346-3, de Orleans.
Relator: Des. Jânio Machado.
Data da decisão: 18.09.2007.
Publicação: DJSC Eletrônico n. 316, edição de 23.10.2007, p. 736.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. EXECUÇÃO. EMBARGOS DO DEVEDOR. CONTRATO DE REPASSE DE EMPRÉSTIMO EXTERNO E NOTA PROMISSÓRIA. AVAL. AUTONOMIA. DISCUSSÃO DA ORIGEM DA DÍVIDA. INVIABILIDADE. ART. 32, DO ANEXO I, DO DECRETO N. 57.663, DE 23.1.1966 E ART. 899, § 2º DO CÓDIGO CIVIL DE 2002
O aval, em face das características próprias do direito cambiário, está impedido de discutir a origem da dívida e alegar exceções pessoais do avalizado.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação cível n. 2002.001346-3, da comarca de Orleans (Vara Única), em que é apelante Julieta Ceccon Remor, e apelado Banco Santander Meridional S/A:
ACORDAM, em Primeira Câmara de Direito Comercial, à unanimidade, conhecer do recurso e negar provimento. Custas legais.
RELATÓRIO
Julieta Ceccon Remor opôs embargos à execução ajuizada por Banco Meridional do Brasil S/A sob o fundamento de que é nula a execução por ausência de citação válida, verificada, ainda, a prescrição; não houve o repasse dos valores referidos na nota promissória executada, tendo o gerente do banco ludibriado a embargante, que assinou o título "apenas como testemunha", e não avalista; insurgiu-se contra os encargos cobrados a título de comissão de permanência, comissão de repasse, atualização do débito pelo câmbio da data do efetivo pagamento, além de indevida cumulação de comissão de permanência com juros moratórios; o bem penhorado é de família, encontrando-se ao abrigo da Lei n. 8.009/90.
O embargado apresentou sua impugnação (fls. 18/32) e, depois, instada acerca das provas a produzir, manifestou-se à fl. 34.
O digno magistrado julgou parcialmente procedentes os embargos (fls. 37/47), reconhecendo a impenhorabilidade do bem de família e afastando a incidência da comissão de repasse e de permanência, atualizando-se a dívida pelo valor do dólar à época da celebração do contrato e corrigido pelo INPC; reconheceu-se a sucumbência recíproca e proporcional, aplicando-se o "caput" do art. 21 do CPC.
Irresignada, a embargante interpôs recurso de apelação cível (fls. 51/54), voltando a insistir na nulidade do título executivo se não foi exibido o comprovante de repasse dos valores mutuados.
Com a resposta do apelado (fls. 57/60), os autos vieram a esta Corte.
VOTO
Consta que, em data de 6.1.1976, o então Banco Sul Brasileiro S/A celebrou "contrato de repasse de empréstimo externo" com Madeireira Santa Rita Ltda., por intermédio do qual "O Banco repassa à DEVEDORA a quantia de Us$10.000,00 (dez mil dólares americanos) proveniente da contratação direta de empréstimo externo" (fls. 7/9 dos autos de execução apensados). E como garantia da operação realizada, emitiu-se nota promissória no valor de US$10.000,00 (dez mil dólares norte americanos), com vencimento previsto para 14.2.1978, constando que a embargante um e outro título na condição de avalista.
O contrato particular subscrito pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas é título executivo extrajudicial (art. 585, inciso II, do CPC), assim como também o é a nota promissória (art. 585, inciso I, do CPC).
Os documentos exibidos pelo credor encontram-se, do ponto de vista formal, perfeitos, até porque nenhum vício extrínseco foi apontado pela embargante.
O único tema trazido ao conhecimento da Câmara para reexame constitui-se então, na alegativa de que não há título executivo válido porque inexistente o documento comprobatório do efetivo repasse do valor reproduzido no contrato e na nota promissória.
A singeleza do tema controvertido foi, com extrema suficiência, solucionado pelo culto magistrado Augusto Cesar Allet Aguiar, a quem se pede vênia para transcrever parte da sentença proferida, assim se fazendo à guisa de fundamentos para a sua confirmação e, por conseqüência, ser desprovido o recurso interposto:
"No que tange aos argumentos de que o repasse dos valores contratados nunca foram aplicados na empresa, caracterizando segundo a embargante, irresponsabilidade por parte do embargado, melhor sorte não lhe assiste.
Ora, se a empresa devedora não aplicou os recursos provenientes do contrato de mútuo na destinação que lhe era devida, segundo instrumento contratual, não pode agora, querendo ilidir sua responsabilidade, alegar fato pelo qual deu causa. Aceitado tal premissa, estaria-se premiando o autor da própria torpeza.
A proibição do venire contra factum proprium (proceder contra fato próprio), que corresponde a dois comportamentos, ambos lícitos que se contradizem no tempo, tem seu fundamento na doutrina da confiança, que por sua vez espelha-se na boa-fé contratual.
A este respeito o ilustre professor FERNANDO NORONHA explica:
'O exercício de um direito é inadmissível quando dessa forma se põe em contradição com o sentido que razoavelmente, segundo a boa-fé, se podia inferir da sua conduta anterior.
'Muito se tem escrito sobre o princípio da boa-fé, como dever imposto às partes de agirem de acordo com determinados padrões de correção e lealdade, sobretudo depois que os dois principais Códigos Civis germânicos, o alemão e o suíço, lhe consagraram preceitos específicos, em época oportuna' (in 'O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais', Saraiva, 1994, pág. 125).
E afirma logo adiante:
'Embora o Código Civil de 1916 não consagre preceitos gerais a este princípio da boa-fé, entendido como dever imposto às partes de agirem de acordo com determinados padrões de conduta, tal certamente nunca poderia significar que ele não tivesse relevo jurídico. Valem, aqui, considerações similares às expostas a propósito da função social dos contratos. Afinal, trata-se de princípio fundamental, sem o qual, de resto, ficariam incompreensíveis os preceitos esparsos que no próprio Código se reportam à necessidade de pautar condutas de acordo com a boa´-fé' (op. cit., págs. 127/128).
E acrescenta:
'Mais do que duas concepções da boa-fé, existem duas boas-fé, ambas jurídicas, uma subjetiva, a outra objetiva. A primeira diz respeito a dados internos, fundamentalmente psicológicos, atinentes diretamente ao sujeito, a segunda a elementos externos, a normas de conduta, que determinam como ele deve agir. Num caso, está de boa-fé quem ignora a real situação jurídica; no outro, está de boa-fé quem tem motivos para confiar na contraparte. Uma é boa-fé no estado, a outra, boa-fé no princípio' (idem, págs. 131/132).
Arnaldo Rizzardo, reforçando tal entendimento leciona:
'Quem dá lugar a uma situação jurídica enganosa, ainda que sem o deliberado propósito de induzir a erro, não pode pretender que seu direito prevaleça sobre o direito de quem depositou confiança na aparência.' (Ajuris 24/225)." (fls. 39/40).
Mesmo que fossem insuficientes os fundamentos antes transcritos – o que se diz apenas como reforço argumentativo – não se pode ignorar que a condição de avalista da embargada impede-lhe de discutir a origem da dívida ou apresentar exceções pessoais do avalizado.
O art. 32 do Anexo I do Decreto n. 57.663, de 24.1.1966 (Promulgou as Convenções para adoção de uma Lei Uniforme em matéria de letras de câmbio e notas promissórias), dispõe:
"O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.
A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
Se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa em favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra.".
O atual Código Civil reproduz esta orientação, que consubstancia um dos alicerces do direito cambiário:
“Art. 899. (...)
§ 2º Subsiste a responsabilidade do avalista, ainda que nula a obrigação daquele a quem se equipara, a menos que a nulidade decorra de vício de forma.”
A mesma regra prevalece em relação à fiança:
“Art. 837. O fiador pode opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais, e as extintivas da obrigação que competem ao devedor principal, se não provierem simplesmente de incapacidade pessoal, salvo o caso do mútuo feito a pessoa menor.”
Daí lecionar, com precisão, o mestre Rubens Requião:
“Sendo as obrigações cambiárias autônomas uma das outras, o avalista que está sendo executado em virtude da obrigação avalizada, não pode opor-se ao pagamento, fundado em matéria atinente à origem do título, que lhe é estranha. O aval é obrigação formal, autônoma, independente e decorre da simples aposição, no título, da assinatura do avalista. ‘Em direito cambiário’, segundo João Eunápio Borges, ‘nenhum obrigado pode opor ao exeqüente as exceções pessoais de outro devedor’ (Do Aval, pág. 123). Magarinos Torres ensina, por igual, que o avalista não pode valer-se contra outrem, de exceção pessoal do avalizado, não podendo alegar senão direito próprio (Nota Promissória, ns. 121 e 132). No Rec. Extr. n 67.378 o Supremo Tribunal Federal, concordantemente, afirmou o princípio de que ‘não cabe ao avalista defender-se com exceções próprias do avalizado, esclarecendo que sua defesa, quando não se funda em defeito formal do título, ou em falta de requisito para o exercício da ação, somente pode assentar em direito pessoal seu’ (STF, 1ª Turma, Rec. Extr. nº 71.839-GB; Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, in Rev. Trim. de Jurisp., 57/474. Ver, ainda, acórdão do mesmo Tribunal no Rec. Extr. nº 71.245-GB, 2ª Turma). O Código Civil, no art. 900, §2º, impõe ao aval efeitos semelhantes aos descritos.” (grifo no original). (Curso de direito comercial. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 2, p. 431-432).
E, ainda, no mesmo sentido, Fábio Ulhoa Coelho:
“Da autonomia do aval seguem-se importantes conseqüências. Em primeiro lugar, a sua existência, validade e eficácia não estão condicionadas à da obrigação avalizada. Desse modo, se o credor não puder exercer, por qualquer razão, o direito contra o avalizado, isto não compromete a obrigação do avalista. Por exemplo, se o devedor em favor de quem o aval é prestado era incapaz (e não foi devidamente representado ou assistido no momento da assunção da obrigação cambial), ou se a assinatura dele no título foi falsificada, esses fatos não desconstituem nem alteram a extensão da obrigação do avalista. (...) Também em decorrência da autonomia do aval, não pode o avalista, quando executado em virtude do título de crédito, valer-se das exceções pessoais do avalizado, mas apenas as suas próprias exceções (por exemplo, pagamento parcial da letra, falta de requisito essencial etc.).” (Curso de direito comercial. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2000, v. I, p. 404).
É a orientação encontrada no Superior Tribunal de Justiça, em caso versando execução de nota promissória, cujos fundamentos aqui são aproveitados:
“EXECUÇÃO. NOTA PROMISSÓRIA. AVALISTA. DISCUSSÃO SOBRE A ORIGEM DO DÉBITO. INADMISSIBILIDADE. ÔNUS DA PROVA.
O aval é obrigação autônoma e independente, descabendo assim a discussão sobre a origem da dívida.
Instruída a execução com título formalmente em ordem, é do devedor o ônus de elidir a presunção de liquidez e certeza.
Recurso especial conhecido e provido.” (recurso especial n. 190.753, de São Paulo, Quarta Turma, relator o ministro Barros Monteiro, j. em 28.10.2003. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 12 set. 2007).
De igual modo já se manifestou esta Câmara:
“EMBARGOS à EXECUÇÃO - PROVA DOCUMENTAL - OPORTUNIDADE - EXEGESE DO ART. 396 DO CPC - APRESENTAÇÃO COM INICIAL OU COM A RESPOSTA - PRECLUSÃO – AVALISTA - OBRIGAÇÃO FORMAL, AUTÔNOMA E INDEPENDENTE - DISCUSSÃO SOBRE A CAUSA DEBENDI IMPOSSIBILIDADE - NOTA PROMISSÓRIA - TÍTULO PASSADO EM BRANCO - AUSÊNCIA DE PROVA DE ABUSO NO PREENCHIMENTO - VALIDADE NÃO ATINGIDA - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - EXECUÇÃO EMBARGADA - FIXAÇÃO EM ATENÇÃO AOS §§ 3.º E 4.º DO ART. 20 DO CPC - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
(...)
O avalista está obrigado ao pagamento do débito que se propôs a garantir. Não cabe a ele discutir matéria sobre a origem da obrigação. (...).” (apelação cível n. 2001.025342-9, de Blumenau, Primeira Câmara de Direito Comercial, relator Juiz Tulio Pinheiro, j. em 3.6.2004. Disponível em: <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em: 12 set. 2007).
Some-se:
“APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS À EXECUÇÃO DE NOTA PROMISSÓRIA - EXECUTADA NA QUALIDADE DE AVALISTA - CAUSA DEBENDI - IMPOSSIBILIDADE DE DISCUSSÃO - TÍTULO LÍQUIDO, CERTO E EXIGÍVEL - INEXISTÊNCIA DE LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO.
Em razão das características da garantia oferecida, não é lícito ao avalista de nota promissória, ao opor embargos à execução, discutir a causa debendi.” (apelação cível n. 2002.025623-0, de Itajaí, Primeira Câmara de Direito Comercial, relator o desembargador Ricardo Fontes, j. em 12.8.2004. Disponível em: <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em: 12 set. 2007).
DECISÃO
Ante o exposto, a Primeira Câmara de Direito Comercial, à unanimidade, conhece do recurso e nega provimento.
O julgamento, realizado no dia 13 de setembro de 2007, foi presidido pelo desembargador Ricardo Fontes, com voto, e dele participou o desembargador Salim Schead dos Santos.
Florianópolis, 18 de setembro de 2007.
Jânio Machado
RELATOR
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